domingo, 1 de maio de 2011

Sócrates era analfabeto?

Esta questão surgiu em sala da aula. Alguns alunos encontraram na wikipédia (todo cuidado é pouco) a informação de que Sócrates não teria deixado nada escrito pelo fato de ser analfabeto. Já conversei com pessoas estudiosas que acreditam piamente nisso. A questão não pode ser resolvida apenas a partir de opiniões. Os que defendem a tese de que Sócrates era analfabeto o fazem partindo de um raciocínio que parece lógico: quem não escreve é analfabeto; Sócrates não deixou nada escrito; logo, Sócrates é analfabeto. Sem querer tecer comentários a respeito do pretenso silogismo, precisamos, contudo, ficar atentos a alguns detalhes: o primeiro deles é que há uma diferença entre não escrever e não deixar nada escrito. Deixar algo escrito  significa, em linhas gerais, deixar para a posteridade algo de interessante. Alguns pensadores podem ter escrito coisas até interessantes, sem que seus escritos tenham chegado até nós. Não vamos perder tempo fazendo o elenco das inúmeras causas, quer de ordem antrópica, quer de ordem natural, para a perda de tais documentos.
Mas o fato é que Sócrates não deixou nada escrito, ou, se deixou, não chegou até nós. A questão, portanto, permanece. Como dissemos no primeiro parágrafo, o fato de não ter deixado nada escrito não significa que fosse analfabeto. Mas o bom senso nos obriga a admitir que também não significa que soubesse escrever. Nesse sentido, a elucidação da questão parece só ser possível a partir de alguma prova documental, ou, pelo menos, algum testemunho de contemporâneos de Sócrates a respeito de sua condição com relação à leitura e à escrita.
Ocorre que possuímos uma prova documental em forma de testemunho a respeito da questão. Esta prova se encontra no Fédon, obra em que Platão apresenta a versão de Fédon para o último dia de vida do mestre Sócrates. Transcreveremos, a seguir, o trecho que nos parece garantir que Sócrates, se não escreveu sobre sua filosofia, pode não tê-lo feito por qualquer outro motivo, menos por não saber escrever:

(...)Em seguida, Sócrates sentou-se no catre e esfregou com a mão a perna que fora libertada da corrente.
- É uma coisa muito estranha - disse - isso que os homens denominam prazer. Ela harmoniza perfeitamente com a dor que se acredita constituir seu contrário! Porque, se é possível que sejam encontrados juntos, quando se é objeto de um dos dois, deve-se esperar, quase sempre o outro, como se fossem inseparáveis. Creio que se Esopo tivesse pensado nisso,com certeza teria criado uma fábula. Diria que deus, sendo sua vontade reconciliar esses dois inimigos e não conseguindo, amarrou-os pelas cabeças, de forma que, a partir de então, quando um chega, o outro o acompanha. É o que estou sentindo agora, pois à dor que as correntes causavam a esta perna sobreveio o prazer.
- Por Zeus! - retorquiu Cebes, interrompendo-o. - Isso me traz à memória o que alguns, e também Eveno, me indagaram a respeito das fábulas de Esopo, que tu escreveste em metro cantado, e do teu hino a Apolo, e, ainda, qual o motivo de começares a escrever versos desde que foste aprisionado, tu que jamais os escreveste. Quando Eveno me perguntar isso, e tenho certeza de que o fará de novo, que desejas que eu lhe responda?
- Deves dizer-lhe a verdade - respondeu Sócrates - , que não pretendi tornar-me seu rival em poesia, porque sei quanto isso é difícil, mas simplesmente para encontrar a explicação de alguns sonhos e para obedecer-lhes, se porventura, era esse o tipo de música aquela entre as belas artes na qual era-me ordenado que me exercitasse. Pois ao longo de toda a vida tive o mesmo sonho que, sob diferentes formas, me recomendava sempre a mesma coisa: "Sócrates, dizia-me, "exercita-te na música". Eu sempre considerei esta ordem mero estímulo, como normalmente fazem os que participam de torneios, e pensava que esse sonho me ordenava a prosseguir vivendo como até então vivera e continuar no estudo da filosofia, que encerrava todo o meu interesse e que é a música mais sublime de todas. Contudo, em seguida à sentença, havendo a festa de Apolo protelado minha morte, julquei que talvez esse sonho ordenasse que me exercitasse nessa modalidade comum de composição musical, como os outros homens, e que, antes de abandonar este mundo, seria mais seguro para mim cumprir com meu dever ao compor os versos a fim de obedecer ao sonho. Iniciei com este hino ao deus cuja festa estava sendo celebrada; no entanto, depois, refletindo que para ser um poeta de verdade não basta saber fazer discursos em versos, mas que é preciso criar ficções, e, não me ocorrendoo nenhuma, trabalhei sobre as fábulas de Esopo, colocando em versos as primeiras que me vieram à mente. É isso que deves responder a Eveno, estimado Cebes. Saúda-o por mim e leva-lhe meu conselho de que, se for sensato, o melhor que pode fazer é seguir-me quanto antes, pois, ao que parece, é hoje que parto, já que assim o ordenam os atenienses. (...)


Parece-nos que o trecho é bastante elucidativo para a questão colocada. Pelo menos, temos um testemunho de contemporâneos de Sócrates que parecem não discutir a condição de alfabetizado do mestre.

Claro está, contudo, que tal discussão não pretende esgotar o tema, nem mesmo colocar qualquer juízo de valor em relação ao fato de Sócrates saber escrever ou não. Sabemos que na antiguidade havia escribas que possuíam bela letra e trabalhavam como copistas sem entender uma única palavra do que escreviam: eram desenhistas de letras, por assim dizer. Sabemos, também, que muitos sábios e poetas utilizavam o serviço de escravos para escrever, para registrar suas ideias que eram ditadas (escrever não era uma tarefa tão simples como é hoje). Evidente está que o poeta ou sábio que utilizava os serviços (trabalho braçal, mecânico) do escravo ou do escriba necessariamente deveria conhecer as letras para garantir que o que fosse ditado seria fialmente registrado.
O interesse da discussão é simplesmente histórico, o que não deixa de ser, também, uma homenagem ao pensador que se destacou por buscar fugir da simples opinião, buscando sempre a ideia que fosse mais de acordo com o que, de fato, ocorre.