sexta-feira, 14 de outubro de 2011

RENOIR, A CAVERNA DE PLATÃO E CHAUÍ


Adônis Cairo Costa



Um Renoir é um Renoir ou não é um Renoir. Posso fazer uma releitura da arte de Renoir? A meu ver, sim! Posso pintar algo meu, a partir de uma obra de Renoir e dizer que é um Renoir? A meu ver, não!
Faz muito tempo, discutíamos um texto sobre a Alegoria da Caverna de Platão quando fui surpreendido pelo comentário de uma colega a respeito da ferramenta que um dos prisioneiros da caverna havia fabricado para de lá sair. Argumentei que não achava interessante fazer referência à tal ferramenta por um motivo simples: Platão não fala de nenhuma ferramenta na conhecida alegoria. A colega argumentou que o filósofo falava, sim, e que a construção da ferramenta fora, inclusive, objeto de discussão num certo grupo de estudos em outra oportunidade.
Fiquei intrigado com a versão, até então por mim desconhecida. Meses depois, encontrei, num pequeno manual de introdução à Filosofia, um resumo da Alegoria que apresentava a tal versão. Passei a desconfiar de que se tratava de mais um desses ídolos do teatro (vide Francis Bacon), obra de algum autor pouco sério mais preocupado em contar historinhas que em aproximar os alunos (e não os “aprendentes”) do texto original.
No entanto, qual não foi a minha surpresa ao encontrar a tal versão “apócrifa” num livro da professora Marilena Chauí, que eu reputo de uma erudição acima de qualquer suspeita. Lá, a professora diz que “... abaixo do muro, do lado de dentro da caverna, há um fogo que ilumina vagamente o interior sombrio e faz com que as coisas que passam do lado de fora sejam projetadas como sombras nas paredes do fundo da caverna” (Os grifos são nossos).
Façamos uma breve análise: se há uma fogueira no interior da caverna, como ela pode projetar a sombra do que ocorre do lado de fora para dentro da mesma caverna? Temos aqui, no mínimo, um problema de Física.
Platão, mais cauteloso e, talvez, por ser o autor da ideia, teve o cuidado de colocar a fogueira do lado de fora, o que, inclusive evitava que os seus moradores ficassem sufocados com o fumaceiro proveniente da tal fonte de luz, geradora das sombras.
Mas a professora não para aí. Fiel ao seu propósito de reinterpretar a obra platônica, sugere, explicitamente, que “um dos prisioneiros, inconformado com a situação em que se encontra, decide abandoná-la. Fabrica um instrumento com o qual quebra os grilhões. [... ]Enfrentando os obstáculos de um caminho íngreme e difícil, sai da caverna.”
Aqui, a meu ver, está o maior problema. A questão de como a sombra vai conseguir se projetar de fora para dentro com a fonte de luz no meio do caminho não é difícil de ser solucionada: um pouquinho de boa vontade e qualquer leitor atento, com um mínimo de senso comum percebe que o que houve foi apenas uma acidental (espero) alteração do local onde a fonte de luz deveria estar. No entanto, o deslocamento necessário para que o prisioneiro da caverna construa uma ferramenta é muito mais complexo: implica numa alteração do que Platão quer dizer com sua alegoria.
No texto original (na verdade, o que tenho é uma tradução para Português feita pela professora Maria Helena da Rocha Pereira), Platão diz: “Logo que alguém soltasse um deles, e o forçasse a endireitar-se de repente, a voltar o pescoço, a andar e a olhar para a luz, ao fazer tudo isso sentiria dor, e o deslumbramento impedi-lo-ia de fixar os objetos cujas sombras via outrora”.
Alguém poderá objetar, dizendo que não há grandes diferenças entre a versão da professora e o texto de Platão. É um direito. Eu, no entanto, penso que temos aqui uma distância abissal entre as duas “alegorias”: a de Platão remete à necessidade de que alguém nos tire da ignorância. O texto de Chauí parece querer insinuar que é possível sair da ignorância, sozinho. Considero a discussão a respeito de como alguém pode sair da ignorância bastante saudável. O que não considero saudável é colocar no texto do pensador uma ideia que não lhe pertence.
Há mais uma questão, e aqui assumo que estou fazendo meras conjecturas, apenas no sentido de entender as motivações da alteração empreendida pela professora: parece-me que o projeto do prisioneiro desenhado por Chauí é curiosamente semelhante ao projeto das filosofias romântico-libertárias que falam do homem que, tendo percebido as condições de opressão em que se encontra, constrói mecanismos de libertação e, em seguida, convida outros a fazerem o mesmo. Gosto de pensar que esta é a motivação da professora. Gosto de pensar que a motivação para a deturpação do texto de Platão é de ordem política. Gosto, mas não considero totalmente honesto.
A professora Marilena Chauí fez sua reescrita num livro didático, um livro para pessoas que, provavelmente, nunca tiveram acesso ao texto original. Por este motivo creio que seria mais elegante se ela apresentasse, primeiro, o texto do mestre Platão e, em seguida, sua releitura. Ficaria ainda melhor se ela, consciente como é do quanto vivemos enganados, aproveitasse seu texto para explicar que não devemos acreditar em todo mundo que diz ter vindo nos libertar. Dessa forma, poderíamos ficar atentos a grupos como os que hoje estão no governo, quando eles se anunciam como estando acima do bem e do mal. Assim, nós calaríamos, por exemplo, a boca dos intelectuais que insistem em afirmar que o grupo que está no poder é a melhor coisa que poderia ter acontecido ao Brasil. Ainda bem que a professora não pensa como esses intelectuais, senão eu ia achar que ela também ainda não saiu da caverna...
        


2 comentários:

  1. E se eu pintasse uma releitura e vendesse como um Renoir, isso seria crime...

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  2. Platão fala da necessidade de o indivíduo se libertar da ignorância. Marilena Chauí deturpa e fala que o indivíduo pode sair sozinho da ignorância. Sem querer, deturpando, ela mostra que o homem, se não for por si próprio, se resolver seguir os passos de outra pessoa pode - na melhor das hipóteses - seguir um caminho certo, sem sair da ignorância, fazer o certo sem saber como, sem saber porquê é o certo. Isso para não falar que pode entrar em uma - ainda maior - ignorância.

    Abraço

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