terça-feira, 19 de junho de 2012

NOSSO FUTURO COMUM


GENTE, LER ESSE TEXTO DE FERNANDO GABEIRA ME FAZ ACREDITAR
 QUE AINDA HÁ VIDA INTELIGENTE NO CENÁRIO POLÍTICO NACIONAL
Fernando Gabeira
O ponto de partida é uma frase de Lula: “Não deixarei que um tucano assuma
 de novo a Presidência“. Lembro, no entanto, que não sou de pegar no pé de
 Lula por suas frases. Cheguei a propor um “habeas língua” para o então
 presidente na sua fase mais punk, quando disse que a mãe nasceu analfabeta
 e que se a Terra fosse quadrada a poluição não circularia pelo mundo. 
Lembro também que hoje concordo com o filósofo americano Richard Rorty: 
não há nada de particular que os intelectuais saibam e todo mundo não saiba. 
Refiro-me à ilusão de conhecer as leis da História, deter segredos profundos
 sobre o que dinamiza seu curso e dominar em detalhes os cenários futuros da
 humanidade.
Nesse sentido, a eleição de Lula, um homem do povo, sem educação formal
 superior, não correspondeu a essa constatação moderna de Rorty. Isso
 porque, apesar de sua simplicidade, Lula encarnava a classe salvadora no
 sonho dos intelectuais, via luta de classes como dínamo da História humana, e 
traçava o mesmo futuro paradisíaco para o socialismo. Na verdade, Lula falava a
 linguagem dos intelectuais. Seus comentários que despertaram risos e ironias no
 passado eram defendidos pelos intelectuais com o argumento de que, apesar de
 pequenos enganos, Lula era rigorosamente fundamentado na questão essencial: 
o rumo da História humana.
A verdade é que a chegada do PT ao poder o consagrou como um partido 
social-democrata e, ironicamente, a social-democracia foi o mais poderoso
 instrumento do capitalismo para neutralizar os comunistas no movimento operário.
 São mudanças de rumo que não incomodam muito quando se chega ao poder. 
O capitalismo é substituído pelas elites e o proletariado salvador, pelos consumidores
 das classes C e D. Os sindicalistas vão ao paraíso de acordo com os critérios da
 cultura nacional, consagrados pela canção: É necessário uma viração pro Nestor,/
 que está vivendo em grande dificuldade.
Se usarmos a fórmula tradicional para atenuar o discurso de Lula, diremos que o
 ex-presidente queria expressar, com sua frase sobre um tucano na Presidência, 
que faria todo o esforço para a vitória do seu partido e para esclarecer os
 eleitores sobre a inconveniência de eleger o adversário. Lula sabe que ninguém manda
 no processo eleitoral. São os eleitores que decidem se alguém ocupará a Presidência.
 Foi só um rápido surto autoritário, talvez estimulado pelo tom de programa de TV, luzes
 e uma plateia receptiva.
Se o candidato tucano for, como tudo indica, o senador Aécio Neves, também eu, em
 trincheira diferente da de Lula, farei todo o esforço para que o tucano não chegue
 à Presidência. Aécio foi um dos artífices na batalha para poupar Sérgio Cabral da
 CPI e confirmou, com essa manobra, a suspeita de que não é muito diferente do PT
 no que diz respeito aos critérios de alianças e ao uso da corrupção dos aliados para
 fortalecer seu projeto de poder. Tudo o que se pode fazer, porém, é tornar clara
 a situação para o eleitor, pois só ele, em sua soberania, vai decidir quem será o eleito.
Na verdade, essa batalha será travada também na esfera da economia. Vivemos um
 momento singular na História do mundo. A crise mundial opõe defensores da
 austeridade, como Angela Merkel, e os que defendem mais gastos e investimentos,
 dentro da visão keynesiana de que a austeridade deve ser implantada no auge do 
crescimento, e não durante o período depressivo. O PT dirigiu o País num período
 de crescimento e muitos gastos, não tanto no investimento, mas no consumo. 
É possível que esse modelo de estímulo à economia tenha alcançado seus limites.
Muito possivelmente, ainda, o curso dos acontecimentos não dependerá tanto da vontade de
 Lula nem dos nossos esforços individuais. A democracia prevê alternância no poder. E a
 análise de como essa alternância se dá na prática revela, em muitos casos, uma gangorra
 entre austeridade e gastança. De modo geral, a crise derrota um governo austero e coloca
 seu oposto no poder, como na França. Mas às vezes derrota um governo social-democrata
 e elege seu adversário direto, como na Espanha.
Pode ser que o esgotamento do modelo de estímulo ao consumo abra espaço para discurso de
 reformas fiscal e trabalhista, de foco em educação e infraestrutura, enfim, de uma fase de
 austeridade. E não é totalmente impossível que um partido de oposição chegue ao governo.
 Restaria ao PT, nesse caso, um grande consolo: ao cabo de um período de austeridade, o 
partido teria grandes chances de voltar ao poder com seu discurso do “conosco ninguém
 pode”, do “vamos que vamos”, “nunca antes neste país”… Não estou afirmando que esse
 mecanismo vai prevalecer, é uma das possibilidades no horizonte. A outra é o próprio
 PT assumir algumas das diretivas de austeridade e conduzir o processo sem necessariamente
 deixar o poder.
Por mais que a crise seja aguda, o apelo ao consumo e à manutenção de intensas políticas
 sociais é muito forte na imaginação popular. O discurso de austeridade só tem espaço eleitoral
 quando as coisas parecem ter degringolado.
O futuro está aberto e não será definido pela exclusiva vontade de Lula. Com todo o
 respeito ao Ratinho e sua plateia, o povo brasileiro é mais diverso e complexo. Se é verdade
 que a História não se define nas academias intelectuais, isso não significa que ela tenha
 passado a ser resolvida nos programas de auditório.
No script do socialismo real o proletariado foi substituído pelo partido, o partido pelo comitê
 central e o comitê central por um só homem. No script da social-democracia tropical Lula
 substituiu o proletariado, o partido, o comitê central e o próprio povo brasileiro ao dizer
 que não deixará um tucano voltar à Presidência. Se avaliar com tranquilidade o que disse, 
Lula vai perceber que sua frase não passa de uma bravata.
O que faz um homem tão popular e bem-sucedido bravatear no Programa do Ratinho é um
 mistério da mente humana que não tenho condições de decifrar. A única pista que me vem
 à cabeça está na sabedoria grega: os deuses primeiro enlouquecem aqueles a quem querem
 destruir. 

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